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São Paulo, Brasil
30/08/2018 - 15/10/2018

Notas à beira-mar

Agnaldo Farias

​”As ondas desenrolam os seus braços

E brancas tombam de bruços.”

A praia. Sophia de Mello Breyner Andresen

 

A mudança de estado das matérias, ou seu tratamento, de modo a contraditar as vocações habitualmente associadas a elas, é um dos fundamentos da poética de José Spaniol, que se manifesta desde sempre e não somente agora, nesta exposição, na qual seus trabalhos assumem um corpo semelhante à água do mar que morre na beira da praia, como acontece com o chão iridescente, liso e leve, no qual pisamos como sobre as películas finas das ondas quando se quebram em avanços e recuos curtos e intermitentes, nem lá nem cá, lavando e levando luz à areia, e com essa sucessão de pinturas – podemos chamá-las assim, em que pese não serem feitas de telas e tintas –, em franco diálogo com o chão, todas elas feitas de chapas de acrílico coloridas, por si só uma resina líquida endurecida, transparente e reflexiva, que o artista fixa levemente afastada da parede, tirando partido da massa tênue e translúcida que derrama sombras pigmentadas sobre as paredes.

 

Esse interesse do artista tem uma amplitude inesperada, pois inclui substâncias sólidas, líquidas e gasosas. Um bom exemplo é o modo como enfrenta a terra, matéria recorrente em sua trajetória. Explorando-a em direções variadas, mudando seus estados físicos, enfrentando-a como chão de superfície desagregada, reduzida a pó, elevando-se e saturando a atmosfera por efeito do vento ou do simples pisar, ou umedecida a ponto de se tornar pastosa, barro escorregadio, macia e maleável, e, ainda, dura, como quando ressequida pelo sol excessivo. Esse vetor inclui a dureza compacta das pedras, como as placas de mármore que usou como suporte em sua série de pinturas apresentadas na Bienal de São Paulo de 2002 (instalação Vista assim, constituída de lousas e escada). Seriam pinturas ou seria melhor referir-se a elas como pinturas/esculturas? A atenção que o artista dá aos estados da matéria desdobra-se nos conceitos com os quais opera; assim, pode-se perfeitamente concluir que esses mármores são esculturas pintadas, a rigor um prolongamento de seus primeiros trabalhos, ainda nos anos 1980, pinturas realizadas sobre sucessões de pequenos sarrafos de madeira. Em lugar da placidez submissa da tela retesada em bastidores de madeira ocultos, o artista preferia a propriedade dos feixes retilíneos, verticais e horizontais, disputando espaço com as tintas aplicadas sobre eles.

 

De volta às pinturas/esculturas de mármore, elas também remetem à série de pinturas/esculturas realizadas em cerâmicas, intitulada Espelhos, de 2000. Peças de pequeno formato, 40 x 40 cm, salientes nas extremidades superiores, algo por volta de 15 cm, apontando para baixo como uma cunha e acentuando a sensação de queda. Se a cor, qualquer uma delas, é de natureza atmosférica, intangível, nessa série ela ganha massa e peso e parece estar sob o risco de uma queda. Já as lousas de mármore pintadas eram pesadas a ponto de não poderem ser suspensas; as paredes não as suportariam, ficando, por isso, acomodadas ao longo das duas paredes paralelas que, junto com uma terceira, de vidro, perfaziam o espaço de 10 x 10 m2 reservado ao artista. Encostadas, as lousas, que não ofereciam resistência à força da gravidade, faceavam uma escada que ocupava diagonalmente o espaço, uma escada feita de terra vermelha, compactada por meio da tradicional técnica da taipa de pilão, terra socada em formas de madeira, e que, contrariando o peso enunciado pelas placas de mármore, impulsionava a sala para o alto, como se falasse da vontade e da possibilidade de se elevar.

 

Se a exposição de agora se refere ao chão da beira do mar, intermitentemente recoberto de lâminas d’água e que vai se esgarçando em círculos irregulares quando as ondas se desfazem numa confusão de espumas, há que se considerar que, segundo a lógica do artista sobre a mudança de estado das coisas e sobre a versatilidade de seu comportamento físico, o chão, nesta exposição, é posto em pé e prolonga-se pela parede nas pinturas/esculturas de chapas de acrílico colocadas diante do olhar do público.

 

Nesta mostra, como em séries anteriores, os trabalhos organizam-se pela tensão entre os planos e linhas verticais e horizontais. Imprevistamente, o chão escorre para cima, subvertendo o impulso da gravidade. Nela acontece um raciocínio semelhante ao empregado na série de objetos O descanso da sala, de 2006, um conjunto de mesas, cadeiras e camas de madeira, cujos pés e espaldares prolongavam-se para o alto, até se emendarem em outras mesas, cadeiras e camas, reproduções iguais mas invertidas das que estavam embaixo, posicionadas como que buscando assentarem-se no forro da sala em que estavam sendo expostas, ou no céu, quando disposta em áreas livres.

 

Em qualquer um desses vetores registra-se um gosto pela instabilidade, pelas estruturas desequilibradas ou precariamente equilibradas, a compreensão de que tudo é flutuante, como é o caso das instalações compostas por balanças, dotadas de hastes fixadas por cabos colocados fora do centro, como nos instrumentos utilizados em feiras de ruas para a medição de peso, e que o artista utiliza para encontrar o ponto de equilíbrio entre coisas totalmente distintas, como uma pilha de livros e bolas de cerâmica (Biblioteca e balanças, 1999; Balanças e lousas, 2009).

 

Dentre as substâncias e estruturas mais fluidas, esplende as que são afetas à água, às superfícies cambiantes que reagem à luz como se estilhaçassem, produtoras de reflexos. Pertencem a essa família, na qualidade de um dos pontos altos da longa e complexa investigação do artista, as palavras, compostas por letras impressas, moldadas ou esculpidas em materiais variados.

 

O ponto de partida da atenção às palavras é uma peça de 1992, de título A condição do voo não é física, nem o ar, nem as asas. É a memória, de quando José Spaniol ainda vivia na Alemanha e estudava na Academia de Dusseldorf. Uma frase impressa num papel parafinado (“Era só uma bela frase. Ali sozinha. Sem pensamento anterior nem posterior. Uma beleza sem lugar para existir”), acomodada numa pequena caixa de paredes grossas, feita de parafina (30 x 12 x 9 cm). Uma urna, um abrigo para as palavras, uma estratégia que visava impedir sua dissolução no espaço, dado que um texto nada mais é do que uma correnteza. Daí em diante o artista explorou o texto sob os dois ângulos, físico e semântico, e terminou lançando palavras ao chão, fazendo do piso um papel, um espaço próprio à proliferação de parataxes, sintaxes arrevezadas, sentenças perpassadas por trocadilhos, palíndromos e onomatopeias, em suma, fonte de movimentação dos significados. Textos que no geral faziam largo uso de parafina, material ardiloso quando aquecido, que se liquefaz para, em seguida, na velocidade ditada pela temperatura do ar, ir se enrijecendo, aprisionando o corpo que porventura molha, criando-lhe uma pele opaca, translúcida, fria, embaciando e amortecendo a pulsação do que lhe vai dentro . Justo o contrário da potência semântica que suscitam, a pletora de significados que irradiam do corpo submerso.

 

Esse é o caso das letras aos pés dos dois barcos bêbados, encarapitados no alto de feixes entrecruzados de bambus, instalação superlativa apresentada na Pinacoteca do Estado de São Paulo, em 2016, nomeada Tiamm Schuoomm Cash!, som símile ao do marulho, o rumor às vezes imperceptível das vagas curtas que fazem a junção da terra com a parte móvel do mundo.

 

Caminhamos pela mostra de agora como pela superfície das águas, sobre um chão pautado na impermanência, um chão flutuante composto de granito preto, marchetado por parcelas irregulares, circulares, elipsoides, de mármore branco. Nas quatro paredes que definem o ambiente, quatro conjuntos de pinturas/esculturas de acrílico, nas cores violeta, amarelo, azul e laranja. Cada uma delas, à maneira do chão, marchetadas por planos de acrílico branco leitoso. São caixas coloridas: as placas estão fixadas por parafusos que as fazem distar 7 cm de um suporte branco com as mesmas medidas. Henri Matisse advertiu que o primeiro risco numa folha de papel era o quinto. As bordas contam. Igualmente as bordas retangulares de um chapa de acrílico, mais ainda quando têm 6 mm de espessura, como é o caso. São bordas grossas e nelas as cores se intensificam, o desenho da peça fica ainda mais límpido, assim como os contornos sinuosos dos planos brancos insertados. O olhar vagueia à deriva sobre cada uma delas, deslizando ao sabor dos caminhos abertos por esses grafismos. E a cor, grão da matéria resinada, dissolve-se por dentro, tingindo o suporte que está por trás, elevando-o suavemente, atraindo o olhar, fazendo atravessar a chapa e prosseguir por uma camada impalpável. O visitante percorre lentamente a galeria, pois não há como não ceder ao amavio de um chão tão eloquente, enquanto flutua pelas superfícies das pinturas. Vê através delas e vê-se refletido nelas. Há nessa experiência algo de quando entramos no mar, de quando ficamos com a água pela cintura e metade do nosso corpo desaparece, e, enlevados, brincamos com a superfície cambiante que nos divide fazendo-nos habitar dois mundos, a água turvada pelo branco das ondas se desfazendo, perpetuamente se desfazendo.


José Spaniol na Usina de Arte


Exposição José Spaniol no programa Metropolis

Exposição José Spaniol no programa Metropolis


Exposição TIUMMMMTICHAMM de José Spaniol na Dan Galeria, no programa Metropolis da TV Cultura.