" Sobre aquilo que permanece invisível"

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São Paulo, Brasil
14/06/2025 - 14/08/2025

Sobre aquilo que permanece invisível: “Objetos Ocultos”,  de José Manuel Ballester

No conto A Procura de Averróis, do escritor argentino Jorge Luis Borges, imagina-se um problema insolúvel _ a tradução de palavras cujos significados não encontram nenhum equivalente para a cultura de quem as traduz. Este problema aponta, no entanto, para uma outra questão mais fundamental _ para o bem e para o mal, estamos inexoravelmente ligados ao nosso próprio tempo; fora dele, não há como existir, fora dele, desaparecemos.

A narrativa traz Averróis, um filósofo árabe do século 12 nascido em Córdoba (lembre que grande parte da Espanha estava então ocupada por árabes), famoso por suas traduções dos gregos, que está traduzindo para o árabe a Poética de Aristóteles. Seu trabalho é interrompido por um problema difícil: as palavras tragédia e comédia, cujos significados Averróis desconhece, uma vez que não havia teatro no mundo islâmico.

O filósofo consulta os trabalhos de referência que ele tem disponíveis, dizendo a si mesmo que “o que estamos buscando geralmente está muito perto de nós”, mas não consegue encontrar uma resposta satisfatória. Atraído por algo que parece uma melodia, ele olha para fora do terraço.

Abaixo, três crianças, falando o dialeto espanhol, ainda incipiente da Península Ibérica, estão imitando o ato de chamar os muçulmanos à oração; em outras palavras, estão imitando o azan.

Uma das crianças finge ser o minarete, a torre da mesquita, de onde os fiéis são chamados a orar. Outra, montada nos ombros do primeiro menino, finge ser o muezzin, o religioso que, da mesquita, chama os fiéis para a oração, ou salá. O terceiro menino, que está ajoelhado, finge ser o povo que está orando.

O que Averróis está presenciando é representação, mimese, uma manifestação espontânea de teatro, isto é, o objeto ao qual se referem as palavras que ele está tentando entender. No entanto, mesmo a resposta a seu problema estando ali na sua frente, Averróis não se dá conta disso.

Mais tarde, diante da história contada por um amigo, vivida numa terra distante, novamente ele não consegue entender que a exposição oral se tratava da observação de uma encenação feita por atores.

No final do conto, Averróis, recolhido novamente à sua biblioteca, tem um momento de epifania (que, na verdade, é de nós leitores, ao sermos interrompidos pelo autor do conto, Borges), uma vez que a história de Averróis e suas buscas também não passam de representações: _

“Sentiu sono, sentiu um pouco de frio. Desenrolado o turbante, olhou-se num espelho de metal. Não sei o que viram seus olhos, porque nenhum historiador descreveu as formas de seu rosto.

Sei que desapareceu bruscamente, como se o fulminasse um fogo sem luz, e que com ele desapareceram a casa e o invisível repuxo e os livros e os manuscritos e as pombas e as muitas escravas de cabelos negros e a trêmula escrava de cabelos ruivos e Farach e Abulcásim e os roseirais e talvez o Guadalquivir.”

Ao tomarmos consciência de que o que estamos lendo não é real, de que Averróis, por mais que tenha existido realmente, para nós é somente acessível por conjecturas, por hipóteses, écfrases ou ficção, imediatamente se escancara a farsa a qual fomos convidados a assistir, tornando-nos momentaneamente presentes e partícipes dela, tornando-a real.

A nova exposição de José Manuel Ballester, “Espaços Ocultos”, permite pensar numa estratégia semelhante à usada por Aristóteles e Borges, assim como nos expõe frontalmente à questão da insolubilidade quanto ao trabalho de se traduzir para uma linguagem e um tempo atuais obras que foram pensadas em outros tempos e meios, alheios às nossas categorias de pensamento e sensibilidade.

Ballester tem consciência disso; então prefere lançar mão de uma estratégia de releitura, elidindo ou acrescentando digitalmente partes e figuras de cenas em reproduções de obras de arte muito famosas ou conhecidas: A Última Ceia (1495-1498), de Leonardo da Vinci; O Nascimento de Vênus (1483-1485), A Primavera (1482); A História de Nastagio degli Onesti (data desconhecida), de Botticelli; A Morte do Cavaleiro de Celano (1297-1300), A Expulsão dos Demônios de Arezzo (1297-1330), São Francisco diante do Sultão (1295), O Milagre do Presépio de Greccio (1296-1299), de Giotto; O Jardim das Delícias Terrenas (1504), de Bosch; Embarcação de Santa Paula Romana em Ostia (1634-1637), de Claude Lorrain, etc.

O ponto de partida do artista é colocar-nos enquanto espectadores no lugar do observador ou destinatário original destas obras; por isso, ele reproduz exatamente as dimensões dos originais, embora algumas delas estejam atualmente deslocadas dos locais para os quais foram comissionadas, pensadas e produzidas. Ballester reapresenta o cenário da Última Ceia de Leonardo Da Vinci (Ultima Cena, 2010), fazendo-nos ver, de um modo nunca antes visto, o lugar onde se desenrolou (ou se desenrolará) a história _ os personagens estão ausentes, apenas os alimentos, bebidas, pratos e taças, assim como a grande toalha alva esticada sobre a mesa são visíveis.

Mas por ser uma das obras de arte mais reproduzidas de todos os tempos, logo imaginamos as figuras e suas posições no banquete. Assim ocorre aqui, como proposição lúdica ao vedor moderno, a releitura da história da invenção da memória pelo grego Simônides de Cós. Cícero narra esta história no livro II do De oratore: _

“Conta-se que, ceando um dia na casa de Scopas, em Crannon, na Tessália, Simônides cantou uma ode em louvor do seu hóspede na qual, para embelezar sua maneira, como fazem os poetas, estendeu-se bastante sobre Castor e Pollux.

Scopas, movido por uma baixa avareza, disse a Simônides que pagaria pelos versos apenas a metade do preço combinado e que o autor podia ir reclamar o resto, se achasse conveniente, a seus amigos os Tindárridos, que tinham recebido metade do elogio. Poucos momentos depois, vieram chamar Simônides e lhe pediram que saísse: dois jovens estavam na porta, pedindo com insistência para vê-lo.

Ele se levantou, saiu e não encontrou ninguém. Mas no mesmo momento a sala onde Scopas ceava desabou e o esmagou com seus convivas. Como os parentes das vítimas que desejavam sepultar seus mortos não pudessem reconhecer os cadáveres horrivelmente misturados, Simônides possibilitou que as famílias achassem e enterrassem os restos de cada um deles lembrando-se dos lugares que todos os convidados tinham ocupado nos leitos. Instruído por esse evento, ele percebeu que a ordem é o que melhor permite clarificar e guiar a memória”

Segundo esta história, a memória se produz a partir de lugares e de imagens de coisas associadas a lugares. Este é o sentido exposto também por Aristóteles no De Anima. Neste livro ele definiu a percepção das imagens pela memória como a percepção de imagens de sensações desprovidas de matéria (De anima, 432 a 7-10). Ballester, aproximado a esta maneira de pensar (de fato todos o somos um pouco devido a algo chamado educação), produz uma imagem na qual o desaparecimento das figuras em cena permite que se atente para os lugares que elas ocupavam, produzindo em nós a experiência de uma persistência da memória que será mais ou menos duradoura de acordo com o lugar reservado em nós mesmos para aquelas obras já conhecidas.

O que se coloca em xeque aqui não é a suposta perda da aura da obra de arte (como propôs Walter Benjamin) a partir das técnicas atuais de reprodutibilidade e edição digitais, mas a primazia do próprio ato de perceber, que jamais está separado da memória, seja ela individual ou coletiva.

Em Lugar para nascimiento (2012), apenas a imagem da grande concha aberta paira sobre as ondas do mar _ Vênus, Zéfiro e a Hora, embora não estejam presentes, se apresentam como projeções de imagens que buscam ser recuperadas mnemonicamente. Mas estas não são as originais, nem mesmo se pode entendê-las como íntegras, porque já se misturaram ao nosso imaginário e à nossa fantasia. Então, entre aquilo que não é mostrado na tela e aquilo que se forma imediatamente em nossa mente, diante dela, se abre um hiato; ou seja, há ali um espaço reservado à participação do espectador, quem quer que ele seja.

Diferentemente da obra original de Botticelli, guardada na Galeria Uffizzi, que se endereça a um destinatário que deveria possuir necessariamente uma erudição semelhante ou superior a do pintor, para permitir que a lesse em chave alegórica composta segundo lugares-comuns encontrados em Luciano, Ovídio, Lucrécio, Poliziano, entre outros, na releitura proposta por Ballester se dá uma abertura para a transformação daquela imagem-base em senso comum, fazendo-a acolher outros sentidos, imprevistos para os seus destinatários antigos.

Tudo é tratado na chave de um divertimento no qual se procura as imagens obliteradas ao mesmo tempo que se percebe de uma maneira inaudita o fundo do quadro, a cena, livre de elementos humanos reconhecíveis. Neste sentido, as novas versões de Ballester são imagens anti-alegóricas, aproximando-se mais como gênero (se fossemos compará-las aos antigos) à divisa ou empresa (tenha-se por exemplo o Dialogo dell imprese militari e amorose, de Paolo Giovo, de 1555).

 

Tal estratégia é semelhante nas obras Primavera (2015) e El bosque italiano (2019) que expõem apenas os fundos das obras A Primavera e A História de Nastagio degli Onesti, ambas também de Botticelli. As figuras desaparecem e novamente apenas o fundo, a “paisagem” é exposta, causando-nos imediatamente um estranhamento. É difícil não pensar que o artista tenha como intenção chamar a nossa atenção para a questão premente da destruição do meio ambiente e da vida em nosso planeta.

Mas este é um sentido (se é que ele existe ali) apenas lateral. O desaparecimento das ninfas, cupidos, animais e de outros personagens que povoavam estas obras, permitindo que apenas as imagens dos bosques permaneçam visíveis, provoca o espectador a repovoar as cenas com as suas próprias histórias.

Ao recepcioná-las vazias, contudo, de elementos alegóricos, o artista produz uma espécie de abstração que não se coloca como ação inteiramente avessa à simbologia e à construção alegórica, mister para essa reconstrução: antes as subordinam à contingência de um efeito cênico cuja idea matter é a natureza.

Novamente se expõe a premissa do De Rerum Natura, de Lucrécio, para o qual a natureza não é uma substância eterna e metafísica, imutável, mas se materializa como um conjunto de átomos que preenchem todas coisas, sendo capaz de uni-las assim como de dissolvê-las. Daí que o modus operandi do artista reflita-se adequadamente na escolha do meio digital, que permite refazer a pintura (ou partes dela) a partir de pequenos pontos, pixels, que são reordenados de acordo com a exposição desejada.

 

Em La Ciudad, Navidad, El fuego (2018), Ballester reúne num friso três pinturas de Giotto como mote para mostrar a imagem da cidade medieval completamente desabitada. Em Giotto, as cenas construídas com misturas de perspectivas, cavaleira e isométrica, apenas servem para situá-las; algo semelhante se dá na arte romana, por exemplo, na Coluna Trajana, que retrata a guerra contra os dácios.

Não há intenção de representação in veritas da localidade em que se produziu o episódio religioso, porque a atenção está concentrada nos milagres, nas ações de pessoas que foram beatificadas graças à fé. Impossível, no entanto, não apreender uma fina ironia por parte do artista.

No primeiro quadro, à esquerda (de quem está de frente para o friso) Ballester se apropriou do afresco A Expulsão dos Demônios de Arezzo (1297-1330). No trabalho original de Giotto, vê-se as figuras dos demônios alados, à direita, voando entre as altas torres da cidade, um deles com os braços erguidos em atitude de revolta contra São Francisco que, por sua vez, se coloca à frente da catedral erguendo seu punho direito em ato de exorcismo. Ora, na versão atual, ironicamente não se vê demônios nem humanos em cena (pois todo mal foi expurgado da cidade); não há ninguém. Apenas o cenário vazio que se aparenta a uma cidade construída em papel machê.

 

Em outro trabalho intitulado Jardin del Arte (2021), Ballester inversamente faz aparecer figuras de obras de arte de diversos tempos dentro do Jardim das Delícias Terrenas (1504) de Bosch. Comparecem aí os personagens da Escola de Atenas, de Rafael, da Última Ceia, de Leonardo, o David de Michelangelo, a Vênus de Milo e muitos outros. É como se estivéssemos diante de um puzzle ou novamente um divertimento, como naquele jogo Onde está o Wally?

A história da arte é vista como um imenso repositório para a fabricação de novas histórias, para se ficcioná-la, uma vez que a mesma é, na verdade, um conjunto de ficções inventado pela sociedade burguesa do século XIX.

Ou seja, a história da arte nasceu na mesma época na qual emergia a primeira das técnicas alográficas de reprodução da obra de arte (com as premissas de operação mecânica) _ a fotografia.

Ballester realiza uma espécie de tautologia ao se apropriar da obra suprematista de Malevich (Variaciones a partir de Malevich, 2018) uma vez que a abstração implícita no processo de reinserção ou releitura é a base da poética ou proposição artística do artista escolhido.

Kasimir Malevich (1879-1935), vale lembrar, dirigiu a sua arte do fauvismo e cubismo para uma síntese geométrica na qual gradualmente os elementos plásticos puros se tornariam a base para uma arte que supera totalmente a superfluidade da representação da assim chamada realidade visível. O suprematismo (nome dado por ele à nova arte) referência que advinha da declaração em prol “da supremacia do puro sentimento” consistia na pintura de cores sólidas (o branco, o negro, o vermelho, o azul, etc.) a partir principalmente das figuras do quadrado e do círculo.

Para Malevich havia neste tipo de abstração um compromisso com a pura objetividade obtida a partir de um tipo de ascese espiritual que deveria manter o campo plástico limpo de quaisquer elementos dissonantes ou sedutores à percepção dos sentidos. Somente assim, a pura percepção ganharia forma, trazendo as pessoas para um patamar mais elevado de contemplação.

Ballester, no entanto, e mais uma vez, esvazia a composição suprematista de seu ideário ascético (assim como esvaziara antes as pinturas de Giotto de seu assunto religioso ou as obras de Botticelli de seu conteúdo alegórico) produzindo nas “variações”, vistas lado a lado, quase o efeito de elementos que dançam ou brincam diante de nossos olhos. Aquele componente irônico novamente se apresenta (enquanto desaparece os sentido originário da obra apropriada) uma vez que é como se agora Malevich suprematista fosse recuado à sua fase futurista ou anterior, na qual os elementos pictóricos eram iterados em busca da impressão de ritmo e movimento (tenha-se por exemplo O Amolador de facas, 1912).

As “variações” de Ballester repropõem um solo terreno, nada metafísico, para Malevich, fazendo que a abstração recue para uma posição não utópica, para a possibilidade, sempre contingente, de se converter em um novo sentido, mas para o nosso tempo presente. Sem os olhos daqueles que produziram aquelas obras (no entanto ainda presentes em museu pelo mundo afora) os sentidos originários das mesmas para o mundo no qual foram produzidas também desaparecem diante daquele espelho distante (a história) assim como o Averróis do conto de Jorge Luis Borges.

Luiz Armando Bagolin

junho de 2025