Buenos Aires, Argentina, 1920 —
Buenos Aires, Argentina, 2013
Se a iconoclastia é o ato de impor suspeitas ao modo como uma cultura representa a si e a seus valores, então León Ferrari é iconoclasta como poucos. Vasta e heterogênea, sua obra, ao se lançar a um exercício de revisão da forma e da imagem, revela-se portadora de uma potência única, capaz de desestabilizar a opressão autoritária do governo dos homens e das almas.
Autodidata, Ferrari inicia sua trajetória artística nos anos 50, quando trabalha com cimento e cerâmica, criando formas abstratas e genéricas que paradoxalmente envolvem uma representação da realidade, como a cerâmica Mujer (1960). Mas é a partir da década de 60 que surgem em sua obra os experimentos com materiais e o texto, que, aliados a uma vigorosa crítica da política e cultura do Ocidente, tornam característico o trabalho do artista. Assim, Ferrari utiliza varetas de metais para formar tramas que se entrecruzam no ar e se combinam a nomes relacionados ao contexto histórico e cultural, como Gagarín (1961), em que a forma circular pronuncia a órbita de um foguete ao redor da Terra. Além de sua participação nos títulos, os textos passam também a ser o próprio tema das obras, explorados em seu significado e em sua visualidade. Deste modo, a Carta a un general (1963) cifra seu conteúdo textual com os desenhos traçados sobre as palavras, o que gera um ambíguo jogo entre a necessidade de dizer e a impossibilidade da expressão, enquanto que em El arca de Noé (1964), o artista comprime o texto ao redor do recorte de uma foto do Davi de Michelangelo, propondo uma nova narrativa do dilúvio na qual ganham centralidade e força as mulheres.
Em 1976, após o golpe militar na Argentina, Ferrari se refugiou no Brasil. Deste seu período de exílio são notáveis trabalhos como a escultura Berimbau (1978), na qual é exigida a participação do público para que sejam ativados os sons; mas também a série Heliografias, desenhos feitos à guisa de plantas arquitetônicas que figuram a ordenação e disciplinarização dos espaços e da vida modernos, acabando por evidenciar seu ordenamento absurdo, como bem o exemplifica Cidade (1980).
Ferrari também empregou em seu trabalho a imagética erótica oriental, o uso de preservativos, as escrituras em braile e mais uma profusa gama de materiais e artifícios, todos integrados em uma interminável investigação plástica sempre conduzida pela virtude crítica, aquela postura insistente de desvelar o que não é somente arbitrário, mas também inaceitável.
V.R.P