Belém, Brasil, 1900 —
Campo Grande, Brasil, 1934
Plena em inquietações e angústias filosóficas, a obra de Ismael Nery desvenda a essência do que é humano, culminando em imagens de beleza insólita e misteriosa.
Aluno da Escola Nacional de Belas Artes do Rio de Janeiro, Nery, como muitos dos artistas brasileiros do período, também realizou estudos na Paris dos anos 20. Sua obra, contudo, destituída de temáticas nacionais, coloca-se à margem da vertente principal do modernismo brasileiro. Congregando influências do expressionismo, cubismo e surrealismo, Nery faz de sua arte a expressão de densas elucubrações metafísicas, trabalhando em parte considerável de sua trajetória com as categorias da unidade e da multiplicidade através do tema platônico, e também bíblico, da androginia. Não sem razão predominam no trabalho do artista as figuras humanas, frequentemente retratadas como casais. Isso é notável em um exemplo como a pintura a óleo Autorretrato com Adalgisa (sem data). Nela, em uma atmosfera noturna e de uma agônica sensualidade, o artista repousa a cabeça contra o dorso da esposa, cuja face inclina-se serenamente para trás enquanto os tons azulados jogam com a luz sobre os corpos portadores de rostos surpreendentemente parecidos, como manifestações masculina e feminina de um mesmo ser. Entre os retratos de casais observa-se também a figuração de pessoas de um mesmo sexo, como Amantes (1924), onde os olhos vazios conferem um acento inquietante à sensualidade da cena. Também são notáveis os diversos autorretratos do artista, no qual ele se identifica como toureiro, Cristo, Satã, denotando a multiplicidade paradoxal de criaturas que convivem em um único indivíduo, o que ganha síntese em uma obra de temática metafísica evidente como Almas num corpo (sem data).
Durante a década de 1930, quando Nery descobre-se tuberculoso, passam a integrar sua obra composições surrealistas que tematizam a doença e a morte através da exploração das vísceras, que abraçam e sufocam um corpo quase abstrato, como em Visão Interna – Agonia (1931). O embate com a finitude se exprime em outro trabalho, Eternidade (1931), no qual o ventre aberto insinua a nutrição da planta que cresce próxima ao corpo sem vida.
Deste modo, há na obra de Nery uma profunda exploração da corporalidade. O corpo como sede da sensualidade e do perigo, do divino e do satânico, do amor e da morte, do efêmero e do eterno, do uno e do múltiplo. E, assim, o surreal de Nery honra o sentido originário do termo, aquela consideração do real em seu todo, no que tem de vigília e no que tem de sonho. Nery faz viver essa realidade enriquecida ao expor o corpo em sua completude, o corpo que é também suas vísceras, sua fragilidade, sua mortalidade, sua tristeza. Surge assim o outro lado da vida, sem o qual a existência jamais é inteira, sem o qual a vida jamais é em essência.
V.R.P
O surreal não é mais do que a consideração do real em seu todo, no que tem de vigília e no que tem de sonho. Nery faz viver essa realidade enriquecida ao expor o corpo em sua completude, o corpo que é também suas vísceras, sua fragilidade, sua mortalidade. Surge assim o outro lado da vida, sem o qual a vida jamais é inteira.