Rio de Janeiro, Brasil, 1897 —
Rio de Janeiro, Brasil, 1976
A sensibilidade com que Di Cavalcanti elaborou em seu trabalho as inovações do modernismo advém proporcionalmente da intimidade com que embrenhou sua força plástica no que há de fugaz e impuro na vida. Em companhia constante de um elenco de personagens, aos quais conferiu estatuto arquetípico, Di Cavalcanti abriu a vereda do nosso primeiro modernismo com obras que recriam a figuração pela invenção da imagética nacional.
Desde o início de sua produção, o artista carioca mostrou interesse em temas do contexto social urbano do Rio de Janeiro, como nas obras Figura (1920) e Amigos [Boêmios] (1921). No começo da década de 1920, o Di Cavalcanti atuou decisivamente na aglutinação do grupo modernista paulista e na organização e divulgação da Semana de Arte Moderna de 1922, evento que é considerado um marco fundamental na renovação das artes no Brasil. Além da participação como expositor, é creditada a Di Cavalcanti a proposta mesma da Semana, bem como a produção da emblemática folheteria de divulgação.
Porém, é a partir da viagem que realiza a Paris, em 1923, que começam a surgir trabalhos que caracterizam as singularidades da obra de Di Cavalcanti. A estadia na capital francesa gestou em Di a missão de construir uma nova imagética nacional, de elaborar a representação moderna da civilização brasileira. Recordando esse período, o artista relata que a imersão na efervescência cultural parisiense “transformou meu amor à vida em amor a tudo o que é civilizado. E como civilizado comecei a conhecer minha terra”. Esse amor ao civilizado volta-se ao nacional como terra aberta a uma nova significação.
Em 1925, a tela Samba surge como fruto carnudo e suculento deste escopo: em impressionante riqueza de cores e sob o desenho esquematizado que remete à Escola de Paris, estão as passistas, novas sacerdotisas ditirâmbicas de olhar extático que empunham não o louro mediterrâneo, mas a arruda brava da terra batida. Saudando as mensageiras do canto popular, aplaude e rodopia a dançarina em vermelho, que se entrega ao encanto musical do fino sambista; o boêmio apaixonado, e o bêbado descalço, já vencido, concluem a espacialidade do altar de Di Cavalcanti à cultura brasileira.
As obras produzidas ao longo da década de 1930 reforçam o interesse do artista pelas questões sociais do país, como na série de caricaturas A realidade brasileira (1930), uma oposição ácida ao governo ditatorial de Vargas. Também durante esse período, o colorido das obras de Di Cavalcanti intensifica-se e assume protagonismo notável nas composições, como se pode ver na solar obra Seresta (1930) e em Cinco moças de Guaratinguetá (1930). O trabalho como dedicado colorista se mantém ao longo de toda produção pictórica de Di, dando substância às experimentações com a figuração em obras como Pescadores (1946), Mulher de chapéu (1952) e O grande carnaval (1953).
Capturando um universo de tipos ideais, a experimentação artística em Di Cavalcanti ocorre pelo envolvimento aprofundado e contínuo, pela amizade fiel e desinteressada com esses verdadeiros totens do ideal de brasilidade que ele encontrava ora na tela, ora ao seu lado, cruzando a boemia das noites.
G.G.S.