Biografia


Escada, Brasil, 1907 —
Paris, França, 2003

Um fluxo de provocante poder pictórico e psicológico corre na obra de Cícero Dias. A um só tempo carnal e mental, o trabalho do artista pernambucano condensa a dialética inesgotável das relações entre real e fantástico, entre terra e pessoa, entre tempo e espaço, constituindo na superfície pictórica o corpo de uma poética de cores e dinâmicas perenes.

O engenho de Jundiá, em Pernambuco, foi o solo em que Dias nasceu e brincou a infância. Capital de seu reino pessoal, é uma terra habitada por criaturas estranhas, híbridas de sonho e memória, integralmente reais enquanto imaginárias. Dessa cidadela invisível fluem formas de um regionalismo intrigante porque voltado para a interioridade de personagens repletos de sentimentos e erotismo, como mitos nordestinos em pleno devir da criação artística. São dessa natureza obras que Dias pintou nos anos 1920 e 1930, tais como as vívidas aquarelas Composição (1928), Amizade (1929) e Mulher nadando (1930). Como o lendário Capibaribe, tal corrente mitológica narrada por Cícero Dias corre inteira e caudalosa no painel Eu vi o mundo… ele começava em Recife (1926-1929), apresentado no Salão da Escola Nacional de Belas-Artes do Rio de Janeiro (ENBA), em 1931. O impacto desta torrente de aproximadamente 15 x 2 metros foi suficiente para engasgar o dirigismo academicista, provocando a vandalização da obra, a demissão de Lúcio Costa, então recém-nomeado reitor da ENBA, e o espanto de Cícero Dias com o reacionarismo da cena artística carioca.

Em 1937, após ser preso pelo regime estadonovista, Cícero Dias embarca para Paris, onde se estabelece de fato, embora não definitivamente, até o fim de sua vida. Em Paris, Dias rapidamente se integrou aos círculos vanguardistas, cultivando franca amizade com artistas como Fernand Léger, Paul Éluard e Pablo Picasso. A pintura de Dias amadurece naturalmente no novo ambiente e não perde de vista a poética fantástico-regionalista de seu Pernambuco, algo que pode ser observado na manutenção de uma paleta aberta, colorida, de tons fortes e contrastantes, assim como na temática que assume o lugar de ponto de partida para explorações surrealistas e abstracionistas como nas obras Mulher na janela (1939), Mamoeiro ou dançarino, Galo ou abacaxi e Melancia, todas de 1940. Nesses trabalhos, a figura vai dando lugar à cor e à forma, o que culmina em um rico abstracionismo de aspecto orgânico, vegetal, especialmente entre 1942 e 1945.

Durante os anos 1950 e 1960, Dias consolidou sua pesquisa na abstração encaminhando-se para as formas geométricas em arranjos diagonais e conferindo às obras movimento e vibração cromática envolventes. A figura retorna ao longo dos anos 1970, 80 e 90, sempre tingida pelas fontes vitais do artista que continuamente brotaram um universo lírico ancestral e generoso.

G.G.S.